Quando os impérios ruíram: A ONU, a descolonização e as vozes de um mundo que não queria mais ajoelhar
- Geo Expand
- há 6 dias
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Entre o fim da Segunda Guerra Mundial e os anos 1970, o mundo viu mais de 80 países nascerem, impérios desabarem e novas vozes emergirem nos salões da diplomacia global. No meio desse turbilhão, a ONU se consolidou como o palco onde se discutia o fim da dominação colonial. Mas o que, de fato, significa “descolonizar”? E até onde a ONU foi capaz de cumprir esse ideal?
O colonialismo e o século da ocupação
Nos séculos XIX e XX, o planeta foi redesenhado a partir de interesses europeus. Impérios como o britânico, francês, belga, português e espanhol dominaram vastas regiões da África, Ásia e Caribe. A partilha colonial não foi apenas territorial: ela envolveu a exploração econômica, o apagamento cultural e a imposição de fronteiras artificiais, processos cujas cicatrizes ainda hoje são visíveis.
Primeiramente, a Conferência de Berlim (1884-85) marcou o auge desse processo. Combinando diplomacia e violência, potências europeias dividiram a África como um grande mapa de tabuleiro, ignorando por completo os povos que ali viviam. Em outros lugares, como na Ásia e na América Latina, a dominação colonial tomou formas diversas, mas igualmente profundas.

A Primeira Guerra Mundial (1914-18) já havia abalado impérios tradicionais. Mas foi a Segunda Guerra Mundial que precipitou o colapso do sistema colonial. Os custos da guerra, o fortalecimento dos EUA e da URSS, ambos contrários ao colonialismo em seus discursos, e as pressões internas nos países dominados abriram espaço para a luta anticolonial ganhar força.
A ONU entra em cena: autodeterminação e resistência
Criada em 1945 com a missão de preservar a paz e garantir o desenvolvimento global, a Organização das Nações Unidas tornou-se rapidamente o principal espaço institucional de debate sobre o fim do colonialismo.
A base jurídica: o direito à autodeterminação
A Carta da ONU, em seu Artigo 1º, estabelece como objetivo central “o respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos”. Esse trecho se tornaria um pilar da luta anticolonial nos anos seguintes.
Além disso, o Capítulo XI da Carta cria a noção de “territórios não autônomos”, lugares que ainda estavam sob domínio de potências coloniais e que deveriam ter sua emancipação progressivamente promovida.
A Resolução 1514: um marco simbólico
Em 1960, a Assembleia Geral da ONU aprovou a histórica Resolução 1514, também conhecida como Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais. O texto afirmava que “a sujeição dos povos à submissão estrangeira constitui uma negação dos direitos humanos fundamentais”.
Essa declaração, aplaudida por dezenas de países recém-independentes e criticada por potências coloniais como França, Reino Unido e Portugal, consolidou o papel da ONU como defensora do direito à independência.
Casos emblemáticos de descolonização e o papel da ONU
A teoria do direito à autodeterminação ganhou vida nas ruas, nas selvas e nas trincheiras de muitos movimentos revolucionários e independentistas. A ONU, nesse processo, atuou ora como observadora, ora como mediadora e, em casos extremos, como interventora, por exemplo:
Índia (1947) - o laboratório da independência pacífica:
A Índia se tornou independente do Reino Unido após décadas de resistência civil, liderada por nomes como Mahatma Gandhi e Jawaharlal Nehru. A separação da Índia e do Paquistão, contudo, gerou violência étnica e religiosa, com milhões de mortos e deslocados.
No fim, a ONU teve um papel diplomático importante, especialmente na mediação inicial do conflito da Caxemira, disputa que se arrasta até hoje.
Congo (1960) - independência, caos e intervenção:
A descolonização do Congo Belga foi marcada por turbulência. A ONU organizou uma das primeiras missões de paz robustas: a ONUC, com mais de 20 mil militares enviados para tentar estabilizar o país. A missão foi altamente controversa e falhou em impedir o assassinato de Patrice Lumumba, primeiro-ministro do país e símbolo da luta anticolonial.
Hoje, as graves condições socioeconômicas decorrentes da violenta exploração à qual foram submetidos o território e o povo congolês por diversos anos, obrigam a República Democrática do Congo a conviver com confrontos constantes e governos autoritários.

Argélia (1962) - o fim sangrento da colonização francesa:
A guerra pela independência da Argélia (1954-62) foi uma das mais brutais do século XX. A França resistiu ferozmente a entregar a colônia, e mais de um milhão de argelinos morreram em confrontos, massacres e torturas.
A pressão de países recém-independentes e de blocos como o Movimento Não Alinhado fez com que o conflito fosse tema constante na ONU, embora sem resoluções efetivas à época.
Timor-Leste (2002) - descolonização tardia e nova missão da ONU:
Após a Revolução dos Cravos em Portugal (1974), Timor-Leste declarou independência, mas foi rapidamente invadido pela Indonésia. A ONU liderou o referendo de autodeterminação em 1999 e assumiu o governo de transição até a independência oficial em 2002, num dos casos mais recentes e bem-sucedidos de descolonização assistida pela organização.
O colonialismo não morreu: ele se transformou
“Eles nos deram a independência, mas mantiveram o banco, o exército, a moeda, o idioma e os tratados.” – líder africano, Thomas Sankara
Então, apesar da independência política de muitos países, o colonialismo persistiu de formas sutis e estruturais. Esse fenômeno é chamado de neocolonialismo.
A armadilha econômica
Muitas ex-colônias passaram a depender das antigas metrópoles para comércio, financiamento e apoio político. A imposição de modelos neoliberais nos anos 1980 e 90 agravou essa dependência, levando ao endividamento em massa de países africanos e latino-americanos.
A França, por exemplo, mantém bases militares, influência política e até controle monetário (como o caso do Franco CFA) em suas ex-colônias. Isso gerou protestos populares e novas tensões diplomáticas, como visto recentemente no Níger e em Burkina Faso.
Descolonização incompleta: os territórios ainda sob disputa
Atualmente, a ONU reconhece 17 territórios não autônomos, como o Saara Ocidental, Gibraltar, Ilhas Malvinas/Falklands, entre outros. O caso mais emblemático é o do Saara Ocidental, disputado entre o Marrocos e o movimento independentista Frente Polisário. A ONU organiza missões de paz e tenta viabilizar um referendo de autodeterminação há décadas, mas sem sucesso.
Colonialismo interno: povos indígenas e reparações
Ademais, outro debate crescente na ONU gira em torno da descolonização interna: a garantia de direitos a povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007) é um marco, mas sua aplicação concreta ainda é limitada.
A ONU hoje: desafios, silêncios e a diplomacia da memória
Em 2011, a ONU lançou a Terceira Década Internacional para a Erradicação do Colonialismo, encerrada em 2020 sem grandes avanços. Embora simbolicamente importante, a agenda da descolonização perdeu força nas últimas décadas, especialmente com o crescimento de tensões internacionais e a ascensão de novos polos de poder.
Ainda assim, a ONU permanece como guardiã da memória colonial e espaço de resistência simbólica, especialmente por parte do chamado Sul Global.
Movimentos contemporâneos pedem reparações históricas, retorno de artefatos saqueados, revisão de currículos coloniais e resistência ao extrativismo neocolonial, especialmente na África e na América Latina.
Conclusão
Em suma, ONU foi e ainda é peça fundamental no processo de descolonização mundial. Através de resoluções, comitês e missões, ajudou a transformar a luta pela independência em uma questão de direito internacional. Porém, a descolonização está longe de ser uma página virada da história.
Ela vive nos conflitos territoriais, na estrutura das dívidas externas, nos tratados desiguais e nas fronteiras artificiais. Descolonizar, hoje, é mais do que romper com o passado: é reinventar o presente.
Será que somos capazes de deixar de lado o legado do império, inclusive dentro de nós?
Autoria: Maytê Gomes de Queiroz
Referências:
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