O “Tigre Asiático” Coreano: como a Coreia do Sul se tornou uma potência global.
- Geo Expand
- 24 de jul.
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Introdução
Em 1953, após o armistício que encerrou a Guerra da Coreia, o território ao sul do paralelo 38 emergia profundamente devastado: cidades em ruínas, infraestrutura destruída e uma economia praticamente inexistente. O PIB per capita sul-coreano era de cerca de US$ 66, segundo dados do Country Economy, refletindo um país isolado dos mercados internacionais e fortemente dependente de ajuda externa. No entanto, em poucas décadas, a Coreia do Sul protagonizou uma das mais impressionantes trajetórias de reconstrução e ascensão econômica do século XX. Hoje, está entre as 15 maiores economias do planeta, com um PIB estimado em cerca de US$ 1,79 trilhão em 2025 (Cerity Global; GeoRank.org). Empresas como Samsung e Hyundai se tornaram marcas globais, o país se posicionou na vanguarda da tecnologia 5G, e sua cultura — dos K‑dramas à música pop — se consolidou como ferramenta estratégica de projeção internacional.
Como foi possível essa transformação tão profunda e relativamente rápida? Como uma nação marcada por ocupação colonial, guerra e pobreza conseguiu, em poucas décadas, se tornar um centro de inovação, industrialização e soft power global? Este artigo investiga as estratégias — políticas industriais, planejamento estatal, reformulações sociais e escolhas geopolíticas — que fizeram da Coreia do Sul, literalmente, um “Tigre Asiático”.

1. Sob o jugo do império: Colonialismo e resistência (1910–1945)
A ocupação japonesa da Coreia, entre 1910 e 1945, não foi apenas uma anexação política — foi uma tentativa sistemática de apagamento cultural. O idioma coreano foi proibido nas escolas; os nomes coreanos foram substituídos por nomes japoneses; monumentos históricos foram destruídos. Estima-se que mais de 200 mil mulheres coreanas foram forçadas à escravidão sexual nos "bordéis militares" japoneses, as chamadas "mulheres de conforto".
A estrutura econômica da península foi redirecionada para atender aos interesses do império: 80% das indústrias eram controladas por empresas japonesas, enquanto a população coreana era submetida a trabalhos forçados, especialmente em minas e ferrovias. Apesar disso, movimentos de resistência cultural, como o Levante de 1º de Março de 1919, reuniram milhões de coreanos em protestos contra a ocupação. A repressão matou mais de 7 mil pessoas em menos de um mês, segundo o próprio governo colonial.
2. Guerra, divisão e dependência (1945–1960)
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a divisão da península coreana ao longo do paralelo 38 transformou o território em uma das linhas de frente mais tensas da Guerra Fria. Quando a Guerra da Coreia eclodiu em 1950, ela não foi apenas uma disputa geopolítica entre ideologias: foi uma catástrofe humanitária. Em apenas três anos, cerca de 3 milhões de pessoas morreram — a maioria civis. Seul, a capital sul-coreana, foi ocupada e retomada quatro vezes, cada vez mais devastada. Ferrovias, escolas, fábricas e hospitais foram arruinados. Milhares de crianças ficaram órfãs, enquanto famílias inteiras eram separadas de forma abrupta pela nova fronteira militarizada, sem nunca mais se reencontrarem. Milhões de sul-coreanos tornaram-se refugiados internos, vivendo em abrigos improvisados, enfrentando a fome, o frio e a ausência de um futuro. Mais do que prédios e estradas, foi o tecido social que se despedaçou. A memória desse trauma — de corpos sem nome, cidades em cinzas e vidas suspensas — molda até
hoje a identidade do país.
(Nota da autora: recomendo a leitura do artigo “A Guerra da Coreia: Origens e Desenvolvimento”. Link de acesso: https://www.geoexpand.com.br/post/a-guerra-da-coreia-origens-e-desenvolvimento)

No pós-guerra, a Coreia do Sul tornou-se estruturalmente dependente dos Estados Unidos. Entre 1953 e 1960, a ajuda americana chegou a compor a maior parte do orçamento nacional — aproximadamente quatro quintos dele. Essa relação assimétrica criou uma elite política submissa e impediu a construção de um projeto nacional soberano nos primeiros anos. O presidente Syngman Rhee governou com autoritarismo até ser deposto por revoltas estudantis em 1960.
3. A ditadura desenvolvimentista: Park Chung-hee e o Estado corporativo (1961–1979)
O golpe militar de 1961, liderado por Park Chung-hee,deu início a um dos mais controversos ciclos de crescimento da Coreia do Sul: autoritário, centralizador e voltado à industrialização acelerada. Inspirado pelos modelos japoneses e pelo temor do avanço comunista ao norte, Park implementou um Estado desenvolvimentista, no qual o governo assumiu o controle estratégico da economia. Para isso, fortaleceu uma burocracia tecnocrática e criou laços estreitos com grandes conglomerados empresariais, os chamados “chaebols" — entre eles Samsung, Hyundai e LG. Esses grupos foram favorecidos com incentivos fiscais, monopólios setoriais, acesso a crédito estatal e políticas de substituição de importações, em troca de alinhamento ao projeto nacional.
O Plano Quinquenal de Desenvolvimento Econômico (1962–1966), um ambicioso programa de metas, resultou no impressionante salto do PIB em menos de cinco anos, marcando a entrada do país no circuito industrial global. No entanto, por trás dessa ascensão econômica estavam jornadas de trabalho exaustivas, salários abaixo do mínimo necessário para viver e a repressão sistemática a sindicatos. O aparato policial do regime controlava greves, censurava a imprensa e prendia líderes trabalhistas. A promessa de prosperidade era, para muitos, uma prisão sem grades.
A dor dessa desigualdade explodiu em 1970, quando Jeon Tae-il, um jovem operário têxtil de apenas 22 anos, comoveu o país ao imolar-se nas ruas de Seul. Antes de atear fogo ao próprio corpo, segurava um cartaz onde se lia: “Respeitem a Lei do Trabalho”. Jeon denunciava o descumprimento das normas que deveriam proteger os trabalhadores — ignoradas em nome do progresso. Sua morte desencadeou uma onda de comoção e tornou-se um marco simbólico da luta operária sul-coreana, inspirando uma geração de ativistas e provocando fissuras na imagem do milagre econômico.

4. Democratização e reestruturação neoliberal (1980–1997)
Após a morte de Park Chung-hee, a Coreia do Sul mergulhou em um período turbulento. O massacre de Gwangju, em 1980, no qual o Exército reprimiu brutalmente manifestantes pró-democracia, deixou uma ferida profunda na memória nacional. A violência do regime militar, no entanto, não sufocou a esperança: pelo contrário, acendeu uma chama ainda mais forte nas universidades, nas igrejas e entre os trabalhadores urbanos, que passaram a exigir com mais intensidade o fim do autoritarismo.
A eleição direta de 1987 foi uma vitória simbólica para a sociedade civil. Mas, na prática, o poder continuava concentrado nas mãos dos grandes conglomerados empresariais que haviam crescido sob as asas da ditadura. A democracia política emergia, mas a desigualdade estrutural e o autoritarismo econômico seguiam intocados.
Nos anos 1990, o discurso neoliberal chegou com promessas de modernização e prosperidade. O Estado, antes centralizador e protetor, passou a se curvar às exigências do mercado global. Leis trabalhistas foram flexibilizadas, a proteção social encolheu e os laços entre o capital financeiro internacional e os chaebols se estreitaram. O impacto foi devastador para milhões de trabalhadores e pequenos empresários. A insegurança virou regra, o emprego estável virou exceção. A crise asiática no fim da década apenas escancarou as fragilidades desse novo modelo: famílias desfeitas, jovens sem perspectivas, vidas descartadas em nome da eficiência. Era o preço da “modernização”, cobrado sempre dos mais frágeis. O desemprego, que era de 2,1% em 1996, saltou para 7% em 1998 após a crise asiática. Quase um terço das pequenas empresas faliu, e a taxa de suicídio aumentou 45% entre 1997 e 1999, segundo dados do Ministério da Saúde.
5. Cultura, tecnologia, inovação e crises: os paradoxos da modernidade sul-coreana
No século XXI, a Coreia do Sul se reinventou. Se antes era lembrada por exportar produtos manufaturados baratos, hoje ocupa o centro da inovação global, combinando alta tecnologia com uma sofisticada indústria cultural. Empresas como Samsung e Hyundai não apenas dominam mercados, mas moldam estilos de vida, enquanto o governo promove uma política externa baseada em soft power, ou seja, influência cultural e simbólica. O K-pop, os K-dramas e o cinema coreano não surgiram por acaso: são frutos de planejamento estratégico. Em 2009, foi criada a Korea Creative Content Agency (KOCCA), que passou a financiar e internacionalizar a cultura pop sul-coreana.
A explosão de artistas como o grupo BTS, que mobiliza milhões de fãs e influencia até o debate sobre masculinidades no Ocidente, é apenas a face mais visível de um projeto maior. Em 2020, o filme “Parasita” tornou-se símbolo dessa virada: ao conquistar o Oscar de Melhor Filme, sendo a primeira produção não falada em língua inglesa a conseguir esse feito, escancarou uma realidade de desigualdade brutal que, até então, era invisibilizada por trás dos arranha-céus reluzentes de Seul. O mundo aplaudiu o cinema coreano, mas poucos se perguntaram sobre o que aquela obra realmente denunciava.
A modernidade sul-coreana tem um custo alto, frequentemente ignorado. O país ocupa o topo do ranking de suicídios entre os membros da OCDE, com idosos abandonados pelo sistema e jovens pressionados por uma lógica de desempenho implacável. Estudantes enfrentam jornadas que beiram a exaustão: dormem em média cinco horas por noite, entre aulas regulares, reforços e cursinhos noturnos. O futuro, vendido como promissor, cobra sua entrada à base de sacrifício. A taxa de natalidade, por sua vez, caiu para o menor índice do planeta — reflexo de um cotidiano em que não há espaço, tempo ou segurança para formar uma família.
Enquanto o país brilha nos rankings de inovação, esconde sob a superfície uma crise silenciosa de solidão, ansiedade e hipercompetitividade. A Coreia do Sul tornou-se, ao mesmo tempo, símbolo de sucesso global e retrato de um novo tipo de sofrimento: aquele que nasce não da escassez, mas do excesso — de exigência, de controle, de aparência. A potência cultural que seduz o mundo também clama, silenciosamente, por respiro.
6. A encruzilhada coreana: entre China, EUA e a sombra do Norte
A Coreia do Sul vive um paradoxo estratégico: é uma potência econômica de projeção global, mas sua soberania ainda parece tutelada por forças externas. Desde o fim da Guerra da Coreia, em 1953, o país permanece sob o “guarda-chuva” militar dos Estados Unidos, o que garante proteção frente à ameaça do Norte, mas também limita sua margem de manobra diplomática. A presença contínua de tropas americanas em solo sul-coreano, longe de ser apenas simbólica, reafirma a ideia de uma autonomia relativa.
Do outro lado, a China, maior parceira comercial sul-coreana, exerce um poder silencioso, mas crescente — não apenas por meio do comércio, mas também da coerção indireta. Episódios como o boicote econômico imposto por Pequim após a instalação do sistema antimíssil THAAD, em 2016, evidenciam a pressão constante que Seul sofre ao tentar equilibrar seus interesses entre os dois gigantes. Nesse “tabuleiro", qualquer movimento pode custar caro.
Com a Coreia do Norte, o impasse é crônico. As cúpulas diplomáticas geraram mais imagens do que resultados. Pyongyang permanece imprevisível, e seu programa nuclear continua sendo um instrumento de chantagem. Para além dos mísseis lançados, o que está em jogo é a própria viabilidade de uma reunificação — cada vez mais distante e desconfortável de se discutir no Sul, onde parte da população mais jovem já não se identifica com a ideia de uma nação única.
A Coreia do Sul não apenas habita uma zona de conflito: ela é, por si só, uma zona de tensão geopolítica. Suas escolhas, mais do que nunca, precisam equilibrar não só os interesses externos, mas também as contradições internas de um país dividido entre segurança, economia e identidade.
Conclusão:
Conclui-se que a Coreia do Sul é um paradoxo em movimento: potência econômica com fragilidades sociais; democracia vibrante com heranças autoritárias; sociedade inovadora, mas emocionalmente exaurida. Seu sucesso é real, mas não sem rachaduras.
A verdadeira força do chamado “Tigre Asiático” talvez não esteja apenas nos arranha-céus de Seul ou nos processadores da Samsung, mas na resiliência de um povo que, em três gerações, superou guerras, apagamentos culturais e sacrifícios coletivos inimagináveis. Ainda assim, o preço do sucesso continua em disputa.
"O desenvolvimento não é um destino. É uma disputa." — Ha-Joon Chang
A pergunta que resta, portanto, não é se a Coreia do Sul venceu, mas quem venceu na Coreia do Sul? E a que custo?
Autora: Gabrielle Lima
Referências:
CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Editora Unesp, 2004.
JEON, Tae-il. Wikipedia: Jeon Tae-il. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Jeon_Tae-il.
THE ECONOMY of South Korea. Wikipedia: Economy of South Korea. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Economy_of_South_Korea.
HEUNG COALITION. Jeon Tae-il: Against Martyrdom. Disponível em: https://heungcoalition.com/Against-Martyrdom.
INTERNATIONAL MONETARY FUND (IMF). World Economic Outlook Database, April 2025: South Korea. Washington, D.C.: IMF. Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/WEO/weo-database/2025/April/weo-report?c=542.
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